segunda-feira, 25 de junho de 2007

o demônio tipográfico

"Se isso serve de desculpa, foi só recentemente que me dei conta de que fico um pouco atordoado na sua presença. Nunca antes entrei descalço na casa de uma pessoa. Só pode ser o calor!" Como parecia superficial aquela frivolidade protetora. Ele parecia um tuberculoso fingindo que está apenas resfriado. Deu duas linhas em branco e reescreveu: "Sei que como desculpa é insuficiente, mas nos últimos tempos percebo que fico um pouco atordoado na sua presença. Que idéia foi essa a minha, de entrar descalço na sua casa? E quando foi que eu quebrei a beira de um vaso antigo antes?". Repousou as mãos no teclado enquanto enfrentava o impulso de datilografar o nome dela outra vez. "Cee, acho que a culpa não é do calor!" Agora o tom de humor fora substituído pelo melodrama, ou pelo queixume. As perguntas retóricas tinham algo de repulsivo; o ponto de exclamação era o primeiro recurso dos que gritam para se exprimir com mais clareza. Ele só perdoava essa pontuação nas cartas de sua mãe, onde cinco exclamações enfileiradas indicavam uma piada das boas. Ele girou o tambor da máquina e datilografou um "x". "Cee, acho que a culpa não é do calor." Agora o humor desaparecera, e um toque de autocomiseração se insinuara. Seria necessário recolocar o ponto de exclamação. Claramente, a função do tal ponto não era apenas a de aumentar o volume.
Robbie ficou mais quinze minutos mexendo no rascunho e por fim colocou folhas em branco na máquina e passou-o a limpo. As linhas cruciais ficaram assim: "Você poderia pensar que enlouqueci - por entrar na sua casa descalço, ou por quebrar seu vaso antigo. A verdade é que me sinto um pouco tonto e aparvalhado na sua presença, Cee, e acho que a culpa não é do calor! Você me perdoa? Robbie". Então, após alguns momentos de devaneio, com a cadeira inclinada para trás, em que ficou a pensar na página em que sua Anatomia tendia a se abrir nos últimos dias, recolocou a cadeira no lugar e, antes que conseguisse se conter, datilografou: "Em meus sonhos, beijo tua boceta, tua boceta úmida. Em meus pensamentos, passo o dia inteiro fazendo amor contigo."

(...)

"A palavra: tentava impedir que ela ressoasse em seus pensamentos, porém ela dançava em meio às suas idéias, obscena, um demônio tipográfico, sugerindo anagramas vagos e insinuantes - boteca, tabeco, cabeto. As palavras que rimavam ganhavam forma com base nos seus livros infantis - rodela de crochê em forma de rosa, trejeito facial, astro sem luz própria que gravita em torno de uma estrela. Naturalmente, nunca ouvira ninguém pronunciar aquela palavra, nem a vira em letra de fôrma ou a encontrara entre asteriscos. Ninguém na sua presença se referira à existência da palavra, e, mais ainda, ninguém, nem sequer sua mãe, jamais se referira à existência daquela parte de seu corpo que - disso Briony não tinha dúvida - a palavra designava. Ela não tinha dúvida de que era isso. O contexto ajudava, porém não era só isso, a palavra era coerente com seu significado, era quase uma onomatopéia. O arredondado das formas da segunda, terceira e quarta letras era tão claro quanto uma série de desenhos anatômicos. Três figuras ajoelhadas ao pé da cruz da quinta letra."


Ian McEwan, Reparação | Atonement, 2001, pgs. 106, 107 e 140.

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